segunda-feira, 21 de julho de 2014

O dia em que a Terra pirou

O dia em que a Terra pirou
Por Eduardo Meditsch

Era uma noite de domingo, 30 de outubro de 1938, véspera do tradicional Dia das Bruxas nos Estados Unidos. Na noite de Halloween, o Mercury Theater on the Air da Rede CBS, transmitiu a invasão da terra por um exército marciano hostil e indestrutível, que aterrissou em New Jersey e avançou em minutos por todo o país. Era uma adaptação livre do romance A Guerra dos Mundos, do escritor inglês H.G. Wells, publicado no final do século XIX.

Às oito da noite, hora habitual do programa, a encenação começou. Às nove, o estrago estava feito: o diretor e seus atores escapavam da CBS por uma porta dos fundos. A sede da emissora era invadida por uma orda de policiais atônitos e jornalistas surpresos. O programa de rádio havia transformado os Estados Unidos num pandemônio.

Calcula-se que seis milhões de pessoas ouviram a transmissão, e uma em cada cinco não notou que se tratava de uma peça de teatro: os ouvintes acreditaram que o mundo estava de fato sendo invadido pelos marcianos. As redes telefônicas entraram em colapso,  o pânico levou milhares de pessoas às ruas, e as estradas ficaram entupidas: ocorreram acidentes em série, prejuízos incalculáveis e até tentativas de suicídio. “Em qualquer outro país eu seria preso”, afirmou mais tarde Welles: “mas nos Estados Unidos, ganhei um contrato em Hollywood”.

A arte de enganar o ouvinte

Orson Welles tinha um certo fascínio pelos mágicos, e o truque que utilizou no programa foi fazer o público esquecer que estava ouvindo radioteatro. A apresentação da estória descreve uma situação do mundo real, o roteiro segue com um boletim meteorológico e logo os ouvintes são distraídos com um espetáculo de música ao vivo. Então, começam os boletins de notícias, cada vez mais frequentes  e alarmantes, sobre a chegada das naves, o aparecimento dos monstros extraterrestres, sua agressividade e poder de fogo. Em poucos minutos,  já são milhares os seres humanos mortos por raios de calor e gases venenosos, enquanto as autoridades do governo e as forças armadas americanas se confessam impotentes para conter o ataque.

Com os recursos técnicos da época, o barulho da nave alienígena foi representado pelo desenroscar da tampa de um vidro de café solúvel, ecoando na privada do banheiro da emissora. Mas juntado ao relato dramático de um repórter e ao testemunho convincente do cientista Richard Pearson, do Observatório de Princeton – interpretado pelo próprio Welles – o ruído soa fantástico e aterrador. O público só teria chance de saber que se trata de uma brincadeira depois que as máquinas extraterrestres destroem a própria rádio. Aí, a estória ganha um final feliz, com os marcianos sendo carcomidos pelas bactérias terráqueas, quando todo a defesa humana já estava derrotada. Mas pouca gente prestou atenção até este ponto.

A ameaça da guerra real

O pânico provocado pela radiofonização de A Guerra dos Mundos rendeu vários estudos nos Estados Unidos. A tese mais famosa, do psicólogo Hadley Cantril, constatou que o alvoroço da população não foi provocado apenas pelo programa, mas já estava latente após uma década de crise econômica e com a ameaça de mais uma guerra na Europa: Hitler já havia invadido a Checoslováquia e continuava avançando.

O estudo de Cantril também demonstrou que o programa teve diferentes efeitos nos diversos meios sociais. Em geral, o engano foi maior entre as pessoas menos escolarizadas e entre as mais crédulas, como os religiosos fundamentalistas. Muitos tentaram se informar em outras fontes sobre o que estavam ouvindo no rádio, mas o colapso das comunicações e a histeria coletiva impediram que estas tentativas resultassem.

A experiência de A Guerra dos Mundos já foi repetida em diversos países, com resultados semelhantes ou até mais graves. No Chile, em 1944, o susto provocou pelo menos um ataque cardíaco fatal. No Equador, em 1949, uma multidão enfurecida – por ter sido enganada – incendiou a rádio que transmitiu o programa, matando seis funcionários.

No Brasil, houve várias experiências inspiradas no exemplo de Orson Welles, a mais sensacional delas realizada na Rádio Difusora de São Luiz, no Maranhão, em 1971. Em plena ditadura,  a audição do programa mobilizou a Força Aérea e o Exército, e a emissora acabou invadida pelas tropas militares. A legislação brasileira de radiodifusão – como a de quase todo o mundo na atualidade – pune com rigor este tipo de uso do meio, podendo suspender a emissora e até cassar sua concessão. Para a sorte da CBS e de Orson Welles, ainda não havia este tipo de legislação nos Estados Unidos de 1938, o que os livrou de milhares de processos e pedidos de indenização.


(Diário Catarinense | Cultura | Sábado, 26 de outubro de 2013)